domingo, 27 de janeiro de 2008

Ébano

Nasci mal quisto. Minha mãe me confessou inúmeras vezes, sem qualquer pudor, quase num lapso de sinceridade e inocência, que eu nasci por acidente, sem planejamento, numa época difícil, e já nasci amargo. Meus pulmões soavam com toda potência um choro alto, ininterrupto e desesperado, noite após noite eu chorava sem qualquer doença, limpo.
- Não pegue o moleque no colo, vai crescer frouxo e mimado - meu pai corrigia os impulsos de minha mãe com essas palavras.
Quando alcancei idade suficiente para me recordar de minha própria vida, guardei em mim esta que é minha lembrança mais antiga, me lembro do rosto, dos olhos, do dedo indicador de meu pai em frente ao meu nariz e de sua voz selvagem gritando:
- Cale a boca!
Ele já não suportava meu choro, estava enfastiado de me ouvir chorar.
- Cale a boca, bebê chorão. Homem não chora. Seja homem!
Eu não devia Ter mais de cinco anos. Esta é minha lembrança mais antiga e me faz pensar que eu já nasci homem... Não me lembro de Ter chorado outra vez desde então.
Lembro-me de brigar com os garotos da escola, de voltar para casa machucado, infeliz, e encontrar meu pai sentado na poltrona. Ele me fitava com aquela expressão severa, não me dizia uma única palavra. Eu me trancava em meu quarto, me deitava em minha cama com os olhos secos e desejava que aqueles garotos morressem, mas desejava mais ainda que meu pai morresse. Sim, como eu desejava...
Desejei que meu pai morresse até o dia que ele morreu. Então eu pensei que meu desejo se realizara e no dia do velório, esse pensamento se repetia em minha mente:
- Eu matei meu pai!
E aos dez anos me considerei um assassino sem arma, mas por respeito a ele, nesse dia eu acompanhei o enterro sem derramar uma lágrima. Essa foi a única coisa que meu pai me ensinou:
- homem não chora, doutor. Homem que é homem nunca chora.


Foi nessa época que parei de freqüentar a escola, ainda hoje eu ergo as mãos para o céu agradecido por Ter conseguido aprender a escrever e falar como gente. Ainda sinto falta da minha professora que me olhava como quem olha para um menino normal, nascido como qualquer outro, que pode se tornar qualquer coisa boa. Ainda me lembro dela como se eu tivesse me deparado com uma santa difícil de esquecer. Depois que larguei a escola nunca mais a vi.
- Vai chiclete, doutor? Vai bala? Vai limão?
Toda vez que eu vejo a luz vermelha de um semáforo essas frases chegam à ponta de minha língua. Até hoje eu sinto impulso de repeti-las. Minha vida foi pintada de vermelho inúmeras vezes, nessa época o vermelho era o meu ganha-pão.
Minha mãe esperava ansiosa por aquele trocados. As moedas ferviam no meu bolso. Meu corpo inteiro flamejava depois de passar o dia debaixo do sol. Havia dias tão quentes que me faziam ver espelhos projetados no asfalto. Não sei como minha mãe fazia para tirar o cheiro de suor impregnado na minha camiseta.
- Você andou comendo as balas, moleque?
- Nenhuma, não, senhora.
- Pois eu vou contar.
E minha mãe contava, uma por uma até o fim da caixa. Eu realmente não comia. Eu gostava de ouvir minha mãe dizer que eu era uma bom menino. Era só essa a minha paga.
- Bala estraga os dentes ¾ Ela sempre me ensinava.
Essa foi a lição que minha mãe me ensinou:
- Bala estraga os dentes.


Um dia eu acordei, olhei no espelho e achei barba na minha cara. Então eu tive de deixar o semáforo. Motorista não abre a janela para marmanjo.
Eu aprendi a profissão de pedreiro. Comecei carregando areia, misturando cimento com água. É inevitável Ter o gosto da terra na boca, o pó do cimento sobe pelo nariz e vai até a garganta. Eu aprendi a medir, deixar a parede no prumo, transformar tijolo em casa. E eu me sentia digno por isso, me orgulhava do meu suor todos os dias. Este foi o meu brinquedo Lego e é profissão de homem.
Gosto de construir coisas. Ainda sou pedreiro, mas não me canso de pensar que se tivesse continuado na escola hoje eu seria engenheiro. Mas não me queixo. Ainda me sinto digno. Ainda tenho o gosto da terra e do suor na minha boca. Só na rua onde moro, construí cinco casas e vejo meus vizinhos morando num lugar que é um pouco meu.
São casas boas, doutor, com telhados bem feitos. Eu passo por elas com a certeza de que ainda estarão lá depois que eu morrer, isso me faz sentir mais eterno. Cada casa que eu construo é um monumento dizendo que eu existi e fiz alguma coisa boa. Deixei um legado ao mundo.
É este o meu legado para o mundo. Casas que abrigam famílias inteiras, histórias inteiras, esperanças inteiras e sempre haverá o meu suor impresso em cada uma delas.


Os tempos melhoraram em minha casa. Comecei a Ter dinheiro suficiente para me vestir melhor e frenqüentar algumas festas aos sábados. Em uma delas conheci Acácia. Achei-a linda. Ela tinha olhos profundos e um corpo magnífico, era uma flor ingênua e por incrível que pareça quis me namorar.
Um ano depois estávamos casados e ela já estava grávida. Morávamos com minha mãe enquanto eu terminava de construir o nosso canto nos fundos do quintal.
- Você tirou a sorte grande, menina. Meu filho não é para qualquer uma. - Minha mãe não cansava de repetir.
Acácia perdeu dois dentes durante a gravidez. Chorava o tempo todo, se sentia feia, era bobagem dela, até hoje ela é uma flor, acho que sempre será, mas eu nunca a tinha visto tão bonita quanto naqueles dias. Eu a pegava no colo e acalentava minha flor como se ela fosse criança.
- A gente arruma outros dentes, Acácia, pare de chorar...
Mas mulher pode chorar à vontade, não é? Elas adquirem esse direito quando descobrem que são elas que nos dão a luz.
O nosso menino deu trabalho para nascer. Fez a mãe sofrer por seis horas e meia. Na sala eu podia ouvir os gritos, podia ouvi-la chorar...
Quando entrei no quarto, ela já estava com o moleque nos braços. Eu me aproximei devagar, dei-lhe um beijo na testa:
- Você é tão corajosa - Eu falei no ouvido dela, estava orgulhoso da minha flor e ela respondeu toda feliz:
- Dor de parto vale a pena.
Foi isso que Acácia me ensinou:
- Dor de parto vale a pena.


Meu filho recebeu o meu nome. Mas eu era alguém com quem eu não queria que ele se parecesse. Ele herdou minha pobreza e os meus pulmões. Eu pegava o menino no colo toda vez que ele chorava, não me importava se ele crescesse mimado, não queria que ele nascesse adulto. Meu filho podia ser criança o quanto quisesse.
Coloquei o garoto na escola e não desejei que ele saísse de lá até se tornar doutor de qualquer coisa.
Nada nesse mundo me deixava mais feliz do que vê-lo correndo com as outras crianças, jogando bola, trazendo o boletim da escola todo orgulhoso de suas notas.
Mesmo quando já estava tarde, mesmo quando eu já estava cansado e com sono, para mim era um prazer ouvir o menino me contando as histórias que se passaram com ele durante o dia. Ele era a criança que eu podia Ter sido e nunca fui.
Ele tinha apenas dez anos quando eu ouvi aqueles malditos tiros, não sei de onde vieram. Não sei por que vieram, mas acertaram meu menino. Eu o encontrei na cozinha banhado de sangue a água, o copo que ele tinha nas mãos se espatifou no assoalho.
Olha meu menino entre as flores, doutor. Bonito, tão bonito quanto a mãe. Olhe meus olhos secos, incapazes de derramar uma lágrima. Como alguém pode viver sem lágrimas, doutor? Como eu posso viver sem minha criança? A gente não tem muita opção se não viver meio morto.
Foi isso que a vida me ensinou:
- Eu não nasci para ser feliz, doutor, mas eu sou homem, e não teria lágrimas mesmo se eu quisesse, mesmo se precisasse.

2 comentários:

ROSA E OLIVIER disse...

"eres como la noche, calada y constelada."...!?...

Saluto mille!

Casa de OrArtes disse...

Que mundo real é esse!? Chocante! Fiquei arrepiado no final! Triste também.