terça-feira, 6 de maio de 2014

Para amigos

Me deixe alguma coisa sua antes de partir
Qualquer objeto que eu possa deixar jogado pela casa
Qualquer coisa em que eu possa esbarrar
Mas não todo dia, a ponto da rotina fazê-lo perder o significado
Me deixe seu antigo marca-páginas
Escreva nele seu nome e seu número de telefone
Para que eu possa colocá-lo entre as páginas do meu livro favorito
E assim, qualquer dia desses, quando eu resolver folhá-lo novamente
Possa encontrar você nas entrelinhas dessa antiga história
Possa me lembrar da expressão que você traz no rosto hoje
E me faça sentir uma vontade inevitável de falar com você
Apenas para lhe contar que folhei aquele meu velho livro preferido
E encontrei aquele seu velho marca-páginas
E por isso eu telefonei

Deixe alguma coisa de você em mim antes de partir
Qualquer frase que me ajude a crescer sem dor
Qualquer abraço que console minha tristeza
Qualquer silêncio que destaque seus olhos
Qualquer confusão que o tempo transforme em risos
Qualquer alegria tola e inesquecível

Deixe um pouco de você em mim

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Escrevi um livro fantástico e ficaria muito feliz se descobrisse que você leu:

3010 Pós-Cataclismo

Sobre medíocres

Eu espero por dádivas do céu
Meus olhos estão casados de escuridão
Meus ouvidos, cansados de silêncio

Encontrei-me no espelho e achei-me velha
E toquei minhas cicatrizes
Reconheci cada uma de minhas rugas
E fiz tranças nos meus cabelos brancos

Olhei-me nos olhos e eles não mudaram

Deixe-me em paz
Deixe-me respirar
Porque hoje sou só um rascunho de mim

E eu que via e ouvia e sentia
Não sou mais quase nada
De janelas fechadas
E sonhos perdidos e mortos e rotos

Já não uivo para lua
Já não entro no mar escuro
Já não sofro nem me alegro

Agora eu estou na média
Agora eu sou igual
Agora... Só queria matar todos esses pássaros
E ter tinta para pichar todas as casas
E ódio para quebrar tudo que não é meu
E força para estragar o mundo como todos os medíocres fazem

Mas não, nem medíocre
Quem dirá heróica
Quem dirá viva

Mais uma vez e de novo e de novo
Eu caio em um sono sem sonhos
Acordo para acender outro cigarro
E penso em gritar, mas não grito
E penso em viver, mas não vivo
E quero ser grande, mas não cresço

Quem dirá amar
Quem dirá ser boa
Quem dirá ser feliz

Hoje eu estou na média
Esperando o semáforo abrir
Esperando, esperando...
Como todos
Com a mesma cara

Esperando dádivas do céu

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

No apagar das luzes

Hoje. É tão difícil fazer uma canção
Por que não fazer uma que fale de tristeza?
Que descreva a solidão
De quem nunca amou
Ou foi amada o bastante

Memórias e lembranças de um nada profundo
No fundo da alma não resta mais nada
E se minha vida passasse por meus olhos
Eu nada veria
Nem mesmo você

Lembrar da paixão que não vivi
Dos livros que li
E coisas que não fiz Já era tarde demais

O relógio bateu a meia noite
Quando nasci entre um dia e outro
Uma fada me trouxe um dom que eu não conhecia
Falou que eu podia roubar almas num beijo
Mas nunca teria uma só minha

Olhe para mim agora Se ofusque com meu brilho falso 
A emoção acabou antes que viesse por completo
Como o brilho incerto de uma estrela na aurora
Que se esqueceu de morrer com o dia

Quantos versos virão até que eu possa ser feliz?
O que falta para vivermos felizes para sempre?
Falta o apagar das luzes
Falta o cair da noite

Talvez nunca seja cedo demais
Talvez hoje eu durma mais cedo
Para acordar amanhã ou nunca mais

Agora eu paro com um nó na garganta
Com os olhos molhados
Sem poder chorar
As lágrimas secaram
E chorar é para fracos

O mundo é tão louco quanto eu
Ele não tem o que espero
E por mais que me entendam
Eu não consigo entender
Como as coisas funcionam
E por que não pode ser do meu jeito

Se para ser aceito é preciso ser outro
Prefiro não ser

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Dados pessoais

Sou a mente que voa como um pássaro
Com asas contundentes de alfinetes
Sou a alma que se projeta na fumaça
Com a brancura e a perfeição de uma pérola
Sou o corpo que supera seus limites
Elástico e sublime para além do Monte Olímpo
Sou tudo que vi ontem, vivi hoje e sonhei para o amanhã
Sou aquilo que quase posso tocar com a ponta de meus dedos
E se esvai um segundo depois de alcançado
Sou a eterna busca pelo melhor que posso ser.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Ébano

Nasci mal quisto. Minha mãe me confessou inúmeras vezes, sem qualquer pudor, quase num lapso de sinceridade e inocência, que eu nasci por acidente, sem planejamento, numa época difícil, e já nasci amargo. Meus pulmões soavam com toda potência um choro alto, ininterrupto e desesperado, noite após noite eu chorava sem qualquer doença, limpo.
- Não pegue o moleque no colo, vai crescer frouxo e mimado - meu pai corrigia os impulsos de minha mãe com essas palavras.
Quando alcancei idade suficiente para me recordar de minha própria vida, guardei em mim esta que é minha lembrança mais antiga, me lembro do rosto, dos olhos, do dedo indicador de meu pai em frente ao meu nariz e de sua voz selvagem gritando:
- Cale a boca!
Ele já não suportava meu choro, estava enfastiado de me ouvir chorar.
- Cale a boca, bebê chorão. Homem não chora. Seja homem!
Eu não devia Ter mais de cinco anos. Esta é minha lembrança mais antiga e me faz pensar que eu já nasci homem... Não me lembro de Ter chorado outra vez desde então.
Lembro-me de brigar com os garotos da escola, de voltar para casa machucado, infeliz, e encontrar meu pai sentado na poltrona. Ele me fitava com aquela expressão severa, não me dizia uma única palavra. Eu me trancava em meu quarto, me deitava em minha cama com os olhos secos e desejava que aqueles garotos morressem, mas desejava mais ainda que meu pai morresse. Sim, como eu desejava...
Desejei que meu pai morresse até o dia que ele morreu. Então eu pensei que meu desejo se realizara e no dia do velório, esse pensamento se repetia em minha mente:
- Eu matei meu pai!
E aos dez anos me considerei um assassino sem arma, mas por respeito a ele, nesse dia eu acompanhei o enterro sem derramar uma lágrima. Essa foi a única coisa que meu pai me ensinou:
- homem não chora, doutor. Homem que é homem nunca chora.


Foi nessa época que parei de freqüentar a escola, ainda hoje eu ergo as mãos para o céu agradecido por Ter conseguido aprender a escrever e falar como gente. Ainda sinto falta da minha professora que me olhava como quem olha para um menino normal, nascido como qualquer outro, que pode se tornar qualquer coisa boa. Ainda me lembro dela como se eu tivesse me deparado com uma santa difícil de esquecer. Depois que larguei a escola nunca mais a vi.
- Vai chiclete, doutor? Vai bala? Vai limão?
Toda vez que eu vejo a luz vermelha de um semáforo essas frases chegam à ponta de minha língua. Até hoje eu sinto impulso de repeti-las. Minha vida foi pintada de vermelho inúmeras vezes, nessa época o vermelho era o meu ganha-pão.
Minha mãe esperava ansiosa por aquele trocados. As moedas ferviam no meu bolso. Meu corpo inteiro flamejava depois de passar o dia debaixo do sol. Havia dias tão quentes que me faziam ver espelhos projetados no asfalto. Não sei como minha mãe fazia para tirar o cheiro de suor impregnado na minha camiseta.
- Você andou comendo as balas, moleque?
- Nenhuma, não, senhora.
- Pois eu vou contar.
E minha mãe contava, uma por uma até o fim da caixa. Eu realmente não comia. Eu gostava de ouvir minha mãe dizer que eu era uma bom menino. Era só essa a minha paga.
- Bala estraga os dentes ¾ Ela sempre me ensinava.
Essa foi a lição que minha mãe me ensinou:
- Bala estraga os dentes.


Um dia eu acordei, olhei no espelho e achei barba na minha cara. Então eu tive de deixar o semáforo. Motorista não abre a janela para marmanjo.
Eu aprendi a profissão de pedreiro. Comecei carregando areia, misturando cimento com água. É inevitável Ter o gosto da terra na boca, o pó do cimento sobe pelo nariz e vai até a garganta. Eu aprendi a medir, deixar a parede no prumo, transformar tijolo em casa. E eu me sentia digno por isso, me orgulhava do meu suor todos os dias. Este foi o meu brinquedo Lego e é profissão de homem.
Gosto de construir coisas. Ainda sou pedreiro, mas não me canso de pensar que se tivesse continuado na escola hoje eu seria engenheiro. Mas não me queixo. Ainda me sinto digno. Ainda tenho o gosto da terra e do suor na minha boca. Só na rua onde moro, construí cinco casas e vejo meus vizinhos morando num lugar que é um pouco meu.
São casas boas, doutor, com telhados bem feitos. Eu passo por elas com a certeza de que ainda estarão lá depois que eu morrer, isso me faz sentir mais eterno. Cada casa que eu construo é um monumento dizendo que eu existi e fiz alguma coisa boa. Deixei um legado ao mundo.
É este o meu legado para o mundo. Casas que abrigam famílias inteiras, histórias inteiras, esperanças inteiras e sempre haverá o meu suor impresso em cada uma delas.


Os tempos melhoraram em minha casa. Comecei a Ter dinheiro suficiente para me vestir melhor e frenqüentar algumas festas aos sábados. Em uma delas conheci Acácia. Achei-a linda. Ela tinha olhos profundos e um corpo magnífico, era uma flor ingênua e por incrível que pareça quis me namorar.
Um ano depois estávamos casados e ela já estava grávida. Morávamos com minha mãe enquanto eu terminava de construir o nosso canto nos fundos do quintal.
- Você tirou a sorte grande, menina. Meu filho não é para qualquer uma. - Minha mãe não cansava de repetir.
Acácia perdeu dois dentes durante a gravidez. Chorava o tempo todo, se sentia feia, era bobagem dela, até hoje ela é uma flor, acho que sempre será, mas eu nunca a tinha visto tão bonita quanto naqueles dias. Eu a pegava no colo e acalentava minha flor como se ela fosse criança.
- A gente arruma outros dentes, Acácia, pare de chorar...
Mas mulher pode chorar à vontade, não é? Elas adquirem esse direito quando descobrem que são elas que nos dão a luz.
O nosso menino deu trabalho para nascer. Fez a mãe sofrer por seis horas e meia. Na sala eu podia ouvir os gritos, podia ouvi-la chorar...
Quando entrei no quarto, ela já estava com o moleque nos braços. Eu me aproximei devagar, dei-lhe um beijo na testa:
- Você é tão corajosa - Eu falei no ouvido dela, estava orgulhoso da minha flor e ela respondeu toda feliz:
- Dor de parto vale a pena.
Foi isso que Acácia me ensinou:
- Dor de parto vale a pena.


Meu filho recebeu o meu nome. Mas eu era alguém com quem eu não queria que ele se parecesse. Ele herdou minha pobreza e os meus pulmões. Eu pegava o menino no colo toda vez que ele chorava, não me importava se ele crescesse mimado, não queria que ele nascesse adulto. Meu filho podia ser criança o quanto quisesse.
Coloquei o garoto na escola e não desejei que ele saísse de lá até se tornar doutor de qualquer coisa.
Nada nesse mundo me deixava mais feliz do que vê-lo correndo com as outras crianças, jogando bola, trazendo o boletim da escola todo orgulhoso de suas notas.
Mesmo quando já estava tarde, mesmo quando eu já estava cansado e com sono, para mim era um prazer ouvir o menino me contando as histórias que se passaram com ele durante o dia. Ele era a criança que eu podia Ter sido e nunca fui.
Ele tinha apenas dez anos quando eu ouvi aqueles malditos tiros, não sei de onde vieram. Não sei por que vieram, mas acertaram meu menino. Eu o encontrei na cozinha banhado de sangue a água, o copo que ele tinha nas mãos se espatifou no assoalho.
Olha meu menino entre as flores, doutor. Bonito, tão bonito quanto a mãe. Olhe meus olhos secos, incapazes de derramar uma lágrima. Como alguém pode viver sem lágrimas, doutor? Como eu posso viver sem minha criança? A gente não tem muita opção se não viver meio morto.
Foi isso que a vida me ensinou:
- Eu não nasci para ser feliz, doutor, mas eu sou homem, e não teria lágrimas mesmo se eu quisesse, mesmo se precisasse.

terça-feira, 12 de junho de 2007

Poema da felicidade completa

Eu acendo uma vela e faço uma prece
Para que todo ser humano que goste da vida
Não pare para pensar a respeito dela

Para que nenhum egoísta olhe para os lados
Para que todo poeta enxergue apenas a beleza
Para que nenhum suicida pare para pensar na família
No momento crucial

Para que o rico e o pobre se contentem com o que têm
O rico sem remorsos e o pobre sem sonhos
Faço uma prece para que o simples nunca encontre um fútil
Para que o balão luminoso que as crianças soltaram
Não caia em uma casa

Para que a criança no berço se torne um bom adulto
Mas não sensível o suficiente
A ponto de sentir pena do desafortunado que nunca teve um berço

Peço para que quem não teve oportunidade intelectual
Possa vencer nos esportes
E para o que teve que não a desperdice

Para que o pequeno batedor de carteiras
Tenha ganhado o suficiente para o almoço
E para o senhor que teve a carteira batida
Que tenha esquecido os documentos em casa

Faço uma prece para que todo o romântico encontre sua alma gêmea
Que fatalmente será melhor que ele próprio
Para que todas as mães possam morrer antes de seus filhos
De preferência que estejam velhas
E inconvenientes e odiadas pelas noras

Para que o vestido da solteirona seja sempre mais caro que o da noiva
Para que as pessoas visivelmente más sejam atéias
E não creiam em outras vidas
Para que o feio prefira a beleza interior
E o bonito não queira ser reconhecido pela inteligência

Rezo para que o mundo se torne perfeito aos meus olhos
Para que essa empatia que eu sinto acabe
E eu possa acreditar que posso ser feliz entre pessoas infelizes
E para que não criem expectativas a meu respeito

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Jovens demais

Planeta Terra
Mãe azul
Fabrica de anjos bons e maus
Todos nascidos e aprisionados em corpos animais
Bichos-homens recheados de alma
Dotados de sentidos
Amores e ódios
Animais homens perseguidores de metas e objetivos
Inconscientes de sua importância

Eu me vejo no meio dessa multidão de animais criadores
Tão inconsciente quanto qualquer outro
Cheia de individualidade e particularidades como qualquer um
Sem respostas como todos, menos Sócrates
Eu, vivendo de experimentar e aprender e sentir

Sem saber por quê
Sem saber para quê
Pronta para morrer
Sem ter conhecido a verdade
Buscando a felicidade para matar o tempo

Eu seria muito jovem
Mesmo se passasse dos cem anos
Eu seria muito jovem para responder a perguntas eternas
Seria eternamente muito jovem para saber por que estou vivendo
Ou para que nasci anjo bom e mau
Aprisionada em corpo de bicho-homem-mulher

E antes de descobrir porque nasci
Eu já estaria morta
E talvez livre pela primeira vez
Talvez eterna pela primeira vez

Talvez olhando para Terra como se fosse o útero materno
Azul
Gerador de seis bilhões de embriões
Que ainda não viram nada
Que não conhecem nada
Inconscientes
Jovens demais
Sempre jovens demais

domingo, 3 de junho de 2007

Vozes

Uma constante espera por uma paixão
Uma constante espera pela oportunidade
Um sonho esquecido
Mais uma taça de vinho
Mais um cálice dessa bebida amarga
Mais um minuto a se perder ou a se ganhar

É disso que a vida é feita
É para isso que ainda estou vivo
Para ver esses minutos passarem por mim
Impregnados de futilidades e coisas vãs
Para respirar esse ar poluído
Ouvir o som desuniforme dessas buzinas
E ver a faísca de um raio no asfalto

Hoje eu falo de vida
E ela não faz nenhum sentido
E continua a ser esse mistério sem propósito
Onde eu posso cruzar com pessoas apressadas
Que passam por mim como livros fechados
Cruzando a rua e guardando segredos só para si.

E esse murmúrio ou esse silêncio de suas vozes
Me dizem a mesma coisa
E essa multidão me faz sentir como se eu fosse mais um
Que passa apressado e joga as horas pela janela
Que vai ser esquecido com se nunca tivesse vivido
Mais um destinado à morte inevitável.

Uma constante espera pelo fim
Uma constante espera pelo recomeço
Um eterno guardar da pureza
Um eterno zelar pelo espírito

domingo, 27 de maio de 2007

Sonhada ilha

Como que por encanto o mar se fez calmo após a interminável tempestade,
As nuvens se afastaram e o barco enfim encontrou o porto.
Um sol distante, quase esquecido, encheu a baía de luz como há muito tempo não se via,
E o marinheiro cansado, barba por fazer, deitou-se na proa e bebeu seus raios

Permaneceu assim por alguns instantes e, saudoso, pisou em terra firme;
Mas ela, a terra, não parecia firme.
O marinheiro sentiu vertigens,
O tempo e o costume no mar tornaram a areia em ondas.
O marinheiro caiu de joelhos e chorou.

Assustado, voltou ao barco, voltou ao mar;
Nuvens escuras cobriram o céu,
Novamente perdido em alto mar sentiu sua antiga dor.
Sentiu-se forte e seguro no velho mar, na velha tempestade, no velho barco,
De volta às velhas coisas tristes, pessoais, devidamente conhecidas, totalmente domináveis.
Voltou à segurança de uma vida que conhecia bem

Do oriente

O supremo saber,
Saber que todas as coisas passam
Conhecer o efêmero em todos os aspectos
Cem anos, o tempo de uma vida muito longa
E de uma grande guerra
Tudo termina em morte
E a morte é só uma ilusão.

O supremo saber,
Saber que o tempo é uma ampulheta
Que guarda o tempo de nossas vidas
E que quando a ampulheta quebra
A areia fica, e voa e se espalha
E se mistura ao grande mar

Estátuas de mil anos, grandes e fortes
Esculpidas em rocha
Desmoronam em um minuto
Eternos monumentos ao amor
Que um dia vão passar
Jardins suspensos que caem

Saber que tudo acaba
É olhar para tudo com uma saudade inexplicável
É conhecer o mundo de cor
É, talvez, o único saber necessário
É tornar todos os fatos em algo volátil
Tão leves quanto o ar que respiramos por pouco tempo

Saber que tudo passa
Que nenhuma derrota é definitiva
Que nenhum sucesso é o derradeiro
Que tudo vem a seu tempo
E que tudo sucede a tudo
E que quase nada tem importância

O saber supremo,
Saber fazer intermináveis tapetes de areia
Caminhar em prece constante
Viver em eterna romaria
Amar detalhes que em breve não existirão
Dizer adeus, dizer adeus

Realidade Irrelevante

Da minha janela eu não posso ver o mar
Nem posso ver árvores ou pássaros
Nem crianças brincando
Nem pessoas ou carros ou avenidas
Minha janela está voltada para uma parede fria
Fria e acinzentada que esconde boa parte do céu
E é feita de concreto maciço, real e inconfundível

Dessa varanda eu só posso ver telhados cobertos por fuligem
A mesma fuligem que apaga as estrelas
Que antes estavam bordadas na cúpula celeste
Meu coração guarda em mim o que os meus olhos já não podem ver

É meu esse mar, essas árvores e esses pássaros e todas as estrelas
E tudo que é belo que há no mundo
Que me importa esta janela ou esta parede e essa fuligem
Que me importa a escuridão
Se eu sei que existe uma luz que brilha em algum lugar
Essa luz é minha, todas as luzes são minhas e tudo que há no mundo
Guardado longe dos meus olhos, eu sei
Mas todas as coisas e pessoas fazem parte de mim o tempo todo
E todo ser humano é um pouco o que eu sou

Que me importa nunca ter visto um navio
Ou nunca ter ido à lua
Eu posso ver as nuvens cobrindo a terra num enlace carnal
Que faz nuvem e terra tornarem-se vivas
E posso ver agora... que me importa nunca ter andado de avião
O céu habita em mim e é só meu

E eu sinto o calor de todos os vulcões que nunca toquei
E o perfume de todas as flores que nunca pude cheirar
E a corrente elétrica de todos os raios que nunca me mataram
E toda a dor e a alegria e a esperança
E toda a paixão de todas essas pessoas que nunca conheci


E posso sentir você...
Misturado a uma multidão de pessoas que são minhas
Sua alma também é minha
E o mundo é todo meu

Que me importa essa janela...

Meu pequeno mundo de faz-de-conta

E se o mundo de repente fosse mais que um.
E se tudo que eu conheço, sinto, vejo e ouço de repente desmoronasse
E eu pudesse ver sem olhos
E enxergasse além do que a luz me mostra.
E ouvisse mais do que ondas sonoras
E se eu sonhasse dentro de um sonho de alguém que sonha comigo
E se houvessem anjos dançando ao meu redor.
E as teorias não fossem mais que teorias
E eu descobrisse que a física tem regras inventadas como as dos jogos.
E se o universo fosse o relógio de pulso
De um homem que passa apressado para chegar a algum lugar
E se esse homem se chamasse tempo
E se esse lugar se chamasse destino

E se a vida fizesse sentido
Quem seríamos nós?
De onde estaríamos vindo?
Para onde estaríamos indo?
O que teria importância?
E quantos planetas caberiam no meu relógio?

E se a vida fizesse sentido pelo menos uma vez
Se acontecessem mais coisas boas que ruins
Só para variar
E se alguém roubasse nas regras desse eterno jogo
E esse outro mundo coubesse dentro de mim.
Talvez eu pudesse ser mais que só essa ilusão.